Os liberais autoritários

 

#pracegover Pintura com o retrato de John Locke. Seus cabelos são brancos e cacheados. Apesar de seu nariz ser grande, Locke não era mentiroso.

Em tempos malucos como os que temos vivido, encontrar coerência no mundo é tão difícil quanto topar com espécies ameaçadas de extinção. Homo sapiens ainda perambula por aí aos montes. Porém, como disse Raulzito "o homem é o exercício que faz". Então, ser humano é mais difícil de se encontrar.

Há muita gente de personalidade autoritária falando de democracia e de liberdade individual. Para estes, isolamento social, uso de máscaras, responsabilização por propagar mentiras nas redes sociais são atentados a liberdade, a democracia, ao pensamento liberal.

Vamos ver o que disse John Locke, o pai do liberalismo político. Locke defendia que a liberdade é uma característica presente no Estado de Natureza, cujo contrato social deve preservá-la. Esta liberdade, consiste em cada homem poder dispor sobre si e sobre seus bens, dentro dos limites da lei natural, sem estar sob domínio de outra pessoa, pois, nesse caso, não seria livre. 

Contudo, para deixar claro que esta liberdade não significava licenciosidade para qualquer coisa, Locke também apontou para os limites de sua atuação: 

Entretanto, ainda que se tratasse de um “estado de liberdade”, este não é um “estado de permissividade”: o homem desfruta de uma liberdade total de dispor de si mesmo ou de seus bens, mas não de destruir sua própria pessoa, nem qualquer criatura que se encontre sob sua posse, salvo se assim o exigisse um objetivo mais nobre que a sua própria conservação. O “estado de Natureza” é regido por um direito natural que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens (Segundo Tratado sobre o Governo Civil, II, 6).

Os que vociferam contra as medidas restritivas em meio à pandemia, alegando liberdade individual, direito de ir e vir, ou de dispor sobre si da forma como bem entendem, são pessoas autoritárias, sem traço algum de pensamento liberal ou democrático. Isso porque, como disse Locke, não sou livre para lesar o outro em sua vida e saúde. Mas é claro que não dá para esperar bom senso dessas pessoas. Afinal, John Locke era comunista.

Comentários

Daniel Guerreiro disse…
Perfeito, professor! E, embora eu não seja liberal, por ser Católico - como creio que o senhor também o seja, daí o meu comentário -, há de fato a liberdade para que possamos praticar e escolher tão somente o bem. Assim sendo, mais grave ainda seria utilizar-se de sua liberdade para matar os mais indefesos dos seres, que são as pobres crianças ainda não nascidas, mas vivas, que encontram-se no ventre de suas mães. Atitude monstruosa, uma vez que se trata de um assassinato e de uma violação da Lei Natural, já que estamos tratando do assunto. Por esta razão, o Santo Padre, o Papa Francisco, comparou o aborto ao nazismo de "luvas brancas" e disse que esta abominável prática é como contratar um "matador de aluguel". Não há maior autoritarismo que defender tal abominação, minimizá-la, omitir-se ou favorecer forças políticas que tenham como meta "legalizar" este crime odioso.

O mesmo poderíamos dizer a respeito da legalização das drogas e, como o senhor bem citou Locke, tratando a respeito da distinção entre "estado de liberdade" e "estado de permissividade", o mesmo poderíamos dizer do consumo de entorpecentes ilícitos: "o homem desfruta de uma liberdade total de dispor de si mesmo ou de seus bens, mas não de destruir sua própria pessoa, nem qualquer criatura que se encontre sob sua posse..."

Ora, o consumo das drogas para fins recreativos, além de pernicioso, destrói a própria liberdade dos usuários, suas vidas e causa graves problemas às famílias e à sociedade como um todo. Sendo assim, utilizar-se de sua liberdade para destruí-la e arruinar a própria vida, tal como a dos que nos cercam, é uma violação da própria Lei Natural. E, como Católicos, não podemos compactuar com o pecado, nem favorecê-lo, nem agirmos com indiferença para algo que pode custar a Salvação Eterna de nossos irmãos e levá-los à Perdição Eterna no Inferno. O senhor não concorda?

Se o maior bem que podemos adquirir é a salvação das nossas almas e daqueles que amamos - aí inclusa a humanidade como um todo -, seria uma grande omissão e um pecado gravíssimo, negligenciarmos a respeito da pregação da Verdade, que é Nosso Senhor Jesus Cristo, que fundou a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a única religião verdadeira, pois, fora Dela, não há salvação e nenhum Católico poderia negar o dogma "Extra Ecclesiam nulla salus", sob a pena de heresia ou apostasia. Sendo assim, o que dizer da "união civil" dos homossexuais? E da pornografia? E das relações sexuais fora do Santo Sacramento do Matrimônio?
Daniel Guerreiro disse…
Acontece, professor, que é muito estranho que alguns Católicos, unidos aos clamores do mundo, demonstrem tal escândalo diante de um "fascismo imaginário" e de um "autoritarismo da direita", ao mesmo tempo em que silenciam a respeito do que fora mencionado acima. E pior, muitos, sem o senso das proporções, equiparam certos pecados a outros mais graves, para escusarem-se de suas terríveis escolhas. Por exemplo, o furto, que é um pecado grave - na maior parte dos casos -, é menos grave do que o assassinato passional - um pecado gravíssimo -, cometido por uma das partes, entre dois indivíduos coléricos e maliciosos. Seria absurdo dizer que não há distinção de gravidade entre os dois pecados. O mesmo poderia-se dizer de alguém que comparasse a maldade de um batedor de carteiras a um médico que praticasse um aborto em uma pobre e ignorante mulher. O segundo caso, evidentemente, é muito mais grave. Com isto, quero dizer que, embora o liberalismo seja condenado pela Doutrina da Igreja, ainda piores são o socialismo e o comunismo, por exemplo, forças muito mais ativas e poderosas no Brasil do que as forças liberais. Afinal, só um cego, um ignorante ou um mentiroso poderia negar que, até há alguns anos atrás, havia - e ainda há - uma desproporção entre partidos de esquerda - socialistas, comunistas ou social-democratas - e partidos de direita, inexistentes até dois anos atrás. O mesmo poderíamos dizer da esmagadora maioria - para não dizer que fosse hegemônico, embora isto esteja mais próximo da verdade - de nossas faculdades e de nossos professores de humanidades, quase todas constituídas por professores de esquerda. E isto eu afirmo sinceramente, pois, além das provas empíricas, sou licenciado em História, assim como o senhor. Cito-lhe apenas um caso curioso, como uma anedota: quando cursava o ensino fundamental, em um colégio particular, nossos livros didáticos de História eram de autoria do saudoso Mario Furley Schmidt, grande admirador dos regimes humanitários de Cuba, da Venezuela e feroz inimigo do neoliberalismo.

O senhor não crê que, diante de dois males, devemos optar pelo menos pior? E já que o senhor citava líderes e personagens autoritários, o que dizer do ex-presidente Lula, ao afirmar que o falecido Fidel Castro, o ditador mais sanguinário da América Latina, era o "maior de todos os latino-americanos"? Por sua vez, o que poderíamos esperar de seu sucessor Haddad, socialista e discípulo da Escola de Frankfurt - portadora de uma ideologia totalmente incompatível com a Verdade Católica -, tendo como candidata a vice-presidente, a senhora Manuela Manuela d'Ávila, cujo partido, o PCdoB, louva e saúda o terrível regime norte-coreano? E do senhor Guilherme Boulos que, bradando "ditadura nunca mais!", pousa, em uma fotografia, ao lado do simpático democrata Raúl Castro. Espanta-me, professor, a dissumulação, a falta de senso das proporções e a omissão de muitos Católicos. Por isto, o Santo Padre, o Papa Pio XI, afirmou: "Socialismo religioso, socialismo cristão, são termos contraditórios: ninguém pode ao mesmo tempo ser bom católico e socialista verdadeiro" (Quadragesimo Anno, no. 119).
Daniel Guerreiro disse…
O que dizer dos Católicos que, bravinhos por gestos grosseiros, rudes, inadequados ou mesmo pecaminosos, em algumas situações, prefiram silenciar a respeito da esquerda e favorecê-la, de alguma forma, sabendo que esta implementará práticas muito mais graves e monstruosas, como o aborto, porque antipatizam com Bolsonaros e Trumps da vida? Ou seja, acham mais grave a ameaça de um "fascismo imaginário", ao mesmo tempo em que silenciam a respeito do socialismo real e desejoso de matar as pobres crianças nos ventres de suas mães. Mais honesto é aquele que não tem medo de assumir suas posições e proclamar a verdade do que aqueles que, escondidos, em suas autoridades catedráticas, fingem isenção, ao mesmo tempo em que destilam, sutilmente - ou não - suas visões, diante de uma platéia incapaz ou atemorizada - na maior parte das vezes - de discordar por conta de um apelo à autoridade. Um grande abraço ao senhor e que Nossa Senhora de Fátima não cesse de interceder por vós! Deus abençoe!
Daniel Giandoso disse…
Caro Daniel, agradeço por seu comentário.
Você escreve muito bem e pensou sobre vários aspectos que vão muito além das minhas modestas intenções com este simples post. Os assuntos que você aborda são extensos e não posso comentá-los de forma tão rápida. Comento alguma coisa sobre o começo, seguindo a ordem de exposição.
O que eu queria demonstrar é que muitas ṕessoas que defendem o pensamento liberal e agem pensando estar de acordo com ele, estão na verdade, ignorando o próprio liberalismo. Afirmam sua liberdade individual contra a arbitrariedade do Estado (no caso, as medidas por conta da pandemia), mas agem em desacordo com o que disse John Locke (quando circunscreveu os limites da liberdade). Nesse caso, essas pessoas poderiam defender seus pontos de vista estruturando-os fora do liberalismo clássico.

Mas trata-se de um procedimento comum entre nós seres humanos, algo que levamos a vida toda para tentar combater, e que talvez, a maturidade ajuste um pouco. Ou seja, às vezes, isso acontece por falta de informação ou ignorância, por falta de rigor mental, pelo afã das emoções ou até mesmo, por agir de forma ardilosa ou tendenciosa, selecionando em uma doutrina ou teoria somente aquilo que melhor convém.

De fato, o Papa Francisco é fantástico. Estou lendo sua última encíclica. Eu sou um católico bem meia boca. Mas tenho a esperança de um dia ser um cristão autêntico, a ponto de amar o inimigo e dar a minha vida por ele, como fez Jesus Cristo. Essa é uma realidade bem distante de mim. Portanto, não posso dizer que sou cristão, seria hipocrisia de minha parte. E, como você mesmo disse, ainda que eu seja livre para escolher o bem, quando olho para minha vida, vejo que constantemente escolho bens menores, ao invés de escolher o sumo Bem.

Sobre o aborto, como católico (ainda que meia boca) e como pai de 5 filhos não vejo a possibilidade de ser favorável. Assim como qualquer outro tema, o aborto pode ser discutido com argumentos que vem de diferentes esferas. Por meio do Direito Natural ou do Direito Positivo (como fez muitas vezes o jurista e deputado Hélio Bicudo, evocando dentre outros aspectos o Tratado de São José para se posicionar contra a legalização do aborto). Pode ser discutido na esfera da saúde pública (aqui de forma favorável), pode ser discutido aos olhos da fé e da doutrina religiosa. Seja como for, as pessoas se posicionam a partir da formação, da educação que receberam, de suas experiências de vida e visão de mundo. E quando uma mulher decide não abortar ou decide abortar é orientada por esses aspectos e por uma série de contingências que nem sou capaz de mensurar. Então, com católico meia boca e como pai, o aborto me dói, mas não acuso as pessoas de serem abortistas.

Sobre a legalização das drogas, ainda no princípio de Locke, ninguém pode evocar a liberdade para prejudicar a si mesmo. Você coloca essa discussão no universo da salvação eterna, de pactuar com o pecado. Particularmente, penso que um dia (quando eu for cristão de verdade) posso mais contribuir para a salvação das pessoas amando-as como fez Jesus Cristo. Agora, no que concerne a legalização, penso que hoje isso seria trágico, por uma série de precariedades existentes na sociedade brasileira pouco educada e instruída. Então, sobre esse assunto, penso de forma mais pragmática. Há drogas que são legalizadas e outras que não são. E nos dois casos, o critério não é tanto o mal à saúde e muito menos questões de moralidade, mas sim, econômicas, ganha-se muito dinheiro legalizando algumas e combatendo outras.

Bem, Daniel, infelizmente, não posso continuar. Agradeço novamente pelos comentários.
Atenciosamente, prof. Daniel Giandoso.

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