A fuga dos cristãos para Pela

No final do primeiro século, em meio ao trágico acontecimento da Primeira Guerra Judaica (66-72 d.C.) na qual o exército romano destruiu o Templo de Jerusalém, uma curiosa narrativa sobre a fuga dos cristãos de Jerusalém permanece na fronteira entre a lenda e os fatos.

As primeiras comunidades cristãs eram formadas por judeus, chamados pelos especialistas de judeu-cristãos. Na guerra contra os romanos, essas comunidades teriam abandonado Jerusalém migrando-se para Pela (atual Tabaqat Fahl - Jordânia).

Ruínas de Pela. Créditos da Imagem: https://universes.art/en/art-destinations/jordan/pella
 
Eusébio de Cesareia relata que os cristãos partiram para Pela pouco antes da guerra começar:
Ora, os membros da Igreja de Jerusalém, através de uma profecia proveniente de uma revelação feita aos fiéis mais ilustres da cidade, receberam ordem de deixar a cidade antes da guerra e transferir-se para uma cidade da Pereia, chamada Pela. Para lá fugiram de Jerusalém os fiéis de Cristo, de sorte que os santos varões abandonaram totalmente a régia capital dos judeus e toda a terra da Judeia. Então, a justiça de Deus atingiu os judeus que haviam praticado tais iniquidades contra Cristo e os apóstolos e esta geração de ímpios desapareceu inteiramente do meio dos homens (EUSÉBIO, História Eclesiástica, III,5,3).
Então, a partir de Eusébio conclui-se que:
  • Os cristãos partiram porque receberam uma mensagem divina;
  • Todos os santos homens deixaram a cidade (certamente, os líderes das comunidades);
  • A destruição de Jerusalém foi uma punição divina contra os judeus pela morte de Jesus e dos apóstolos.

As palavras de Eusébio correspondem aos fatos ou é apenas uma lenda?
Bem, para alguns historiadores Eusébio seria tendencioso nessa narrativa, pois só ele fala dela. Dado a importância desse acontecimento, é estranho que ele não seja mencionado por outros autores. Também é difícil imaginar que os cristãos conseguiriam fugir de Jerusalém em meio ao cerco romano. Por fim, a cidade de Pela foi saqueada pelos rebeldes, sendo um lugar nada apropriado para fugir. Porém, nada disso é conclusivo.

Por outro lado, outros historiadores amparados no testemunho de Eusébio defendem que a guerra implicou no exílio dos judeu-cristãos de Jerusalém para Pela e de outros grupos de cristãos palestinos para a Ásia Menor. A razão para isso foi a negação dos cristãos em tomar parte nos conflitos. O exílio era a única alternativa para manter as convicções pacifistas dos judeu-cristãos. A fuga para Pela teria gerado uma reação judaica negativa contra os cristãos. No entanto, é difícil imaginar que todos os judeu-cristãos não se solidarizaram com tragédia judaica. 

A questão principal não é a oposição fato x lenda. Na verdade, o grande problema está em associar a fuga para Pela com o fim das comunidades cristãs em Jerusalém. Provavelmente, a guerra dos judeus contra os romanos não foi um fator decisivo para o desaparecimento dos judeu-cristãos de Jerusalém, nem da Palestina. Após a morte de Simeão, sucessor do Apóstolo Tiago, é possível notar uma presença organizada de judeu-cristãos na cidade mantendo uma sucessão episcopal até a Revolta de Bar Cochba (132-135 d.C.).

Há algo mais intrigante em tudo isso. Talvez, Eusébio quisesse esconder uma realidade oposta ao que ele relatava, a saber: o envolvimento de judeu-cristãos na guerra contra os romanos. Contemporâneo ao Imperador Constantino, ele escreveu a História Eclesiástica já no limiar do Império cristão. Não seria nada apropriado falar da participação de cristãos numa guerra contra Roma. A migração para Pela seria um recurso utilizado por Eusébio para inviabilizar qualquer entendimento da participação direta de cristãos na guerra ao lado dos judeus. Além disso, há um significado simbólico representado pelo abandono de Jerusalém pelos cristãos que não foi explorado. Dado que isso poderia significar que o cristianismo deixava seu berço para se tornar uma religião universal para todo o mundo conhecido, a dimensão simbólica deste ato poderia ser recorrente entre os pensadores cristãos, o que não aconteceu.

Leia também: A Conversão de Constantino

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

História em debate: Anarquismo

O calendário da Revolução Francesa

O povo e a ralé em Hannah Arendt

As obrigações do vassalo

Assine a nossa newsletter

Siga-nos nas redes sociais

Style Social Media Buttons