O fascismo nosso de cada dia

Queima de livros em Berlim, 1933. Créditos da imagem: https://www.dw.com/pt-br
"Nós precisamos nos manter alertas para que o sentido destas palavras não seja esquecido novamente. O Fascismo Eterno ainda nos rodeia, as vezes sem uniforme. Seria tão mais fácil para nós se aparecesse novamente no cenário mundial alguém dizendo “Eu quero reabrir Auschwitz, eu quero os Camisas Negras desfilando novamente nas praças italianas”. A vida não é assim tão simples. O Fascismo Eterno pode chegar usando os disfarces mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para qualquer uma de suas instâncias – a qualquer dia, em qualquer parte do mundo" (Umberto Eco).
Afirmar que alguém é de direita, de esquerda, que alguém é liberal ou conservador virou xingamento no Brasil. Isso é bem típico de uma sociedade que pouco ou nunca foi educada para o debate, para a reflexão e para o autoquestionamento. As redes sociais só deixaram evidente essa nossa deficiência. No entanto, quem assume de forma consciente qualquer um desses "xingamentos" sente-se orgulhoso e bem com eles. Agora, ninguém assume a pecha de fascista. Ninguém quer ser filho dessa mãe ou desse pai. Fascista é sempre o outro.
Isso é compreensível, pois o fascismo histórico não pode ser assumido como bom por quem possui sanidade mental mínima ou estrutura psicológica razoável. Portar o básico nessas áreas é bem mais que suficiente para não ser um adorador de Hitler com suástica tatuada.
Mas o problema não é o fascismo histórico, caricaturado e de fácil reconhecimento. O problema é o fascismo oculto que também circula nos Estados democráticos. Enquanto houver um ambiente que cultiva o ódio, o nacionalismo exagerado, o medo do outro, a exclusão dos indesejados, o líder mítico que nos salvará ou o culto à violência como garantia de segurança, o fascismo encontrará terreno para se desenvolver, pois ainda que não seja assumido formalmente, todos aqueles que movidos por discursos simplistas e emotivos aceitam tendências ou atitudes autoritárias para resolução de problemas ameaçadores, operam na lógica do fascismo. Podem se autodenominar como quiser: patriotas, cidadãos de bem, defensores da família, bons cristãos, justiceiros, defensores dos trabalhadores, do trabalho, dos costumes, da tradição, dos nobres valores... não importa, se o alicerce é: sou da turma dos bons e corretos que querem construir a nação ou uma sociedade ideal, e que portanto, cabe destinar à barbárie tudo o que for diferente de mim, estou dialogando com a mentalidade fascista. É claro que se trata de postura constante e irredutível. Todos podemos falar e fazer coisas muito estúpidas, cujos bom senso e consciência corrigem. Essa lucidez não existe no fascismo que move a massa como único corpo em única vontade.

Nos anos 70, Michel Foucault em seu texto "Introdução à vida não fascista", fala desse fascismo que "ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas". Basicamente, ele consiste no gosto pelo poder. Para precaver-se dele seria necessário, dentre outras coisas, liberar a ação política de "toda paranoia unitária e totalizante" e fomentar o pensamento plural.
Também Umberto Eco em sua conferência "O fascismo eterno" de 1995, teceu algumas de suas características, tais como: o culto da tradição, a oposição ao saber e à ciência, uma vez que a verdade já foi anunciada, ação pela ação desprovida de qualquer reflexão sobre os atos, a oposição aos intelectuais e às universidades que "são ninho de comunistas", a busca pelo consenso e o exacerbado medo da diferença, o combate a qualquer identidade social, já que o nacionalismo une a todos, a ideia de que o pacifismo é uma fraqueza, o enaltecimento do militarismo e do heroísmo, a obsessão fálica do macho alfa... dentre outras coisas muito atuais que circulam por aí. Governador decidindo quais livros podem ser lidos, secretário decidindo qual deve ser a cultura de um país, prática docente criminalizada, ataques cotidianos à imprensa, gente decidindo quem é ser humano e quem não é... nada disso é fascismo. É a antessala para ele. Todos estamos nela e poucos se incomodam.

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